Artigo

Seminarista Roniele Bianque Almeida

O trabalho e a doutrina social da Igreja

Por Seminarista Roniele Bianque Almeida

 

“Eis que o salário, que defraudastes aos trabalhadores que ceifavam vossos campos, clama, e seus gritos de ceifadores chegaram aos ouvidos do Senhor dos exércitos” (Tg, 5,4).

Aproxima-se o mês de maio e, com ele, duas importantes comemorações, já em seu primeiro dia: o dia internacional do trabalhador e a memória facultativa a São José Operário. Nesse contexto, é preciso entender que ambas as datas não foram estabelecidas por acaso e sem algum nexo histórico. Primeiramente, a comemoração do dia do trabalhador deve-se à greve geral (1886) em Chicago, nos EUA, que gerou inúmeras manifestações por parte de trabalhadores ligados à indústria. Quase 70 anos depois, nessa mesma data, em 1955, o Papa Pio XII decidiu instituir a memória facultativa a São José Operário.

Essa escolha por parte do Papa foi estabelecida precisamente porque demonstrava grande solicitude para com a classe trabalhadora, que padecia e era explorada. Pio XII, instituindo a festa de São José Operário, em 1 de maio de 1955, disse: “Sim, amados trabalhadores; o Papa e a Igreja não podem escapar à missão divina de guiar, proteger, amar, sobretudo os sofredores, gostaríamos de vos anunciar a nossa determinação em estabelecer - como de fato instituímos - a festa litúrgica do artesão São José, atribuindo-lhe precisamente o dia 1º de maio. Nesse sentido, vemos a grande preocupação da Igreja com a classe trabalhadora e o valor do trabalho humano, ao celebrar, precisamente no dia do trabalhador, a festa de São José Operário.

Ademais, tal preocupação não nasceu com o Papa Pio XII, pois já a encontrávamos no magistério social de Leão XIII, com a Encíclica Rerum Novarum, de 1891, período marcado pela revolução industrial: “Quanto aos ricos e aos patrões, não devem tratar o operário como escravo(RN 12). Assim, sucessivamente, ao longo dos dois últimos séculos, os papas escreveram sobre “a questão social”, enfatizando a dignidade do trabalhador e do trabalho, como bem lembra São João Paulo II na encíclica comemorativa do nonagésimo aniversário da Rerum Novarum: “o tema do trabalho é a chave da questão social” (LE 3).

Sendo um tema tão caro para a Igreja, o que ela nos ensina sobre a defesa da dignidade do trabalhador? Antes precisamos entender que a Igreja possui uma doutrina social que vai tratar de variados temas, inclusive o “trabalho”, fazendo leituras das situações históricas e dando respostas ético-religiosas aos problemas sociais, porque, como nos diz São Paulo VI, “a igreja é perita em humanidade” (PP 13), pois ela está vivendo na história, assim, ilumina as realidades temporais e humanas à luz da Palavra de Deus. E recorda-nos a constituição pastoral Gaudium et Spes: “é dever da Igreja investigar os sinais dos tempos, e interpretá-los à luz do Evangelho” (GS 4). Nessa perspectiva, a Igreja considera tarefa sua fazer com que a dignidade e os direitos dos trabalhadores sejam respeitados.

Primeiramente, ela trata o trabalho como “dimensão fundamental da existência humana sobre a terra” (LE 4), evocando, assim, a narração do Gênesis sobre a Criação: “Frutificai, disse ele, e multiplicai-vos, enchei a terra e submetei-a” (Cf. Gn 1, 28). Sendo o homem imagem de Deus, desempenhando esse mandato, reflete a própria ação do Criador do universo (LE 4). Dessa forma, entende-se o porquê o trabalho humano traz em si altíssima dignidade, pois o homem, com suas “forças”, é capaz de imprimir sua marca no seu trabalho, e, como imagem de Deus, é uma pessoa. Em outras palavras, um ser dotado de subjetividade, capaz de agir de maneira programada e racional, capaz de decidir por si mesmo e tendente a realizar-se a si mesmo. É como pessoa, pois, que o homem é sujeito do trabalho (LE 6).

Tendo em vista essa vocação do homem, de que “todo homem é criador” (PP 17), enquanto imagem de Deus Criador, pelo trabalho participa ativamente da criação de Deus, refletindo desta forma na sua atividade laboral, a ação do próprio Criador. Sob essa ótica, da participação do homem na ação do Criador, através do trabalho, entendemos a altíssima dignidade do trabalho humano, e que foi elevada ainda mais quando Jesus de Nazaré passou a maior parte de sua vida na carpintaria de José, “sendo Deus tornou-se semelhante a nós em tudo” (Hb 2,17), e cabe aqui relembrar a famosa frase de Dom Pedro Casaldáliga: “No ventre de Maria, Deus se fez carne. Na oficina de José, se fez classe”. Dessa maneira, Jesus de Nazaré constituía o “evangelho do trabalho” (LE 6).

Dessa forma, perante a dignidade do trabalho e do trabalhador, colocamos-nos diante de uma indagação: será que nas condições históricas essa “dignidade fundamental” é respeitada? A resposta é bem clara: certamente não! O âmbito do trabalho humano está infelizmente marcado por injustiças, exploração, ganância, frieza e crueldade de sistemas passados e de um atual sistema econômico-político capitalista e neoliberal que reduz a pessoa humana em indivíduo, que coloca o lucro acima do homem, que prioriza o capital em vez do trabalho.

Acerca dessa lógica macabra, nos dias atuais, quantos homens e mulheres vivem ainda em condições de trabalho análogo à escravidão, com baixa remuneração, subempregos, falta de segurança no ambiente do trabalho e sem um plano de saúde digno, jornadas exaustivas, além do vergonhoso atraso dos salários. Como bem disse São João XXIII na Encíclica Mater et Magistra: “Amargura profunda invade o nosso espírito diante do espetáculo tristíssimo de inumeráveis trabalhadores em muitas nações e continentes inteiros, os quais recebem um salário que os submete, a eles e às famílias, a condições de vida infra-humanas”(MM 68).

Diante desses fatores que tornam o homem objeto do lucro pelo lucro, vê-se claramente que o resultado desse sistema é a violação da dignidade do homem. Acerca disso, Bento XVI afirmou que: “Em muitos casos os pobres são o resultado da violação da dignidade do trabalho humano, seja porque as suas possibilidades são limitadas (desemprego, subemprego), seja porque são desvalorizados” (CV 63). No sistema econômico vigente, existe a primazia do capital sobre o trabalho, o lucro sobre o homem, em nome de um sistema fundado em uma cultura de produção e do consumo sem sentido ético que, sem dúvida, precariza o âmbito do trabalho. As contribuições da globalização, deixadas à lógica do mercado, produzem consequências desumanizadoras, como, por exemplo, o desemprego, que se deve ao que chamamos de “mercado financeiro sem fronteira” (SORGE, 2018, p. 74-75).

Dessa forma, por meio da opressão que o homem sofre no âmbito trabalhista, ele é anulado como pessoa e se transforma apenas em fonte de lucro. Essa realidade é um gravíssimo atentado contra a dignidade, pois o trabalho deveria ser fonte de realização da sua humanidade e vocação de pessoa humana, diz a Laudato Si’: “o verdadeiro objetivo deveria ser sempre consentir-lhe uma vida digna através do trabalho” (LS 128).

Diante dessa tenebrosa realidade, da violação da dignidade dos trabalhadores, a Igreja convoca seus filhos a assumir essa causa tão nobre de defender a sua dignidade, “as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias da humanidade, pois são os sentimentos dos discípulos de Cristo” (GS 1),  promovendo e lutando por direitos que sejam suficientemente capazes de dar ao homem as condições necessárias para se desenvolver como pessoa. Assim, urge em nossos dias homens e mulheres imbuídos do Espírito Santo, que vivam profeticamente e defendam a dignidade da pessoa humana tão cara a Deus e à Igreja, pois o Criador, ao colocar a criação a serviço do ser humano, manifestou a altíssima dignidade do homem (DA 381).

Atualmente, o Papa Francisco tem convocado todos os cristãos, os homens, e as mulheres de boa vontade a dizer não a um estilo de economia que mata, que gera a exclusão e a desigualdade social (EG 53) ao propor o modelo econômico de Francisco e Clara, que tem como centro a defesa e a dignidade da vida em todas as suas esferas, rejeitando, assim, a cultura de morte. Em um dos princípios dessa proposta está a seguinte afirmação: “Cremos na urgente necessidade de realmar a economia, colocando no centro das relações sociais a vida em sua diversidade e dignidade, na construção de uma nova sociedade mais igualitária” (ABEFC, 2023, p.25).

Desse modo, que nasça um modelo econômico que preze por condições de trabalho e vida digna, pautado no princípio da solidariedade, orientado sempre pela ética, e que os governos tomem um rumo em direção à economia solidária e equitativa. Que São José Operário interceda por todos os trabalhadores e trabalhadoras, da cidade ou do campo, e ilumine as pessoas de boa-vontade na busca pela justiça, igualdade e paz!

 

Em homenagem aos nossos queridos(as) trabalhadores e trabalhadoras, ofereço uma bela canção do Pe.Zezinho:

TRABALHADORES
Pe. Zezinho, scj

Deus abençoe os lixeiros e as varredeiras
e os operários que sujam as mãos
e o limpador de bueiros e as lavadeiras
e quem se suja de graxa e sabão!

Trabalhadores, trabalhadoras,
Deus também é trabalhador!

Deus abençoe os banqueiros, e os fazendeiros
e os comerciantes e os industriais
e os ilumine também, pra que não explorem
nem especulem, nem ganhem demais!

Deus abençoe os artistas e educadores
e os sonhadores do lado de lá
e os ilumine também, pra que não se esqueçam
que tem criança do lado de cá!

Deus abençoe os profetas e os religiosos
que gostam muito de profetizar
e os ilumine também, pra que não imaginem
que só seu grupinho é que vai se salvar!

Deus abençoe as mulheres trabalhadoras
porque trabalham duas vezes mais
e as abençoe também, pra que não se cansem
porque sem elas não vai haver paz!

Deus abençoe os eleitos e os eleitores
e quem governa este nosso país
e os ilumine também, pra que não se esqueçam
do excluído e do mais infeliz!