Irmã Cleusa: o nascimento da semente que floresceu em martírio e esperança

Neste mês em que se recorda o nascimento de Irmã Cleusa Carolina Rody Coelho, a Diocese de Cachoeiro de Itapemirim rememora com emoção a história de uma mulher que transformou sua fé em serviço e o amor ao próximo em missão. Nascida em 1933, em Cachoeiro de Itapemirim (ES), a religiosa das Missionárias Agostinianas Recoletas (MAR) fez da própria vida um testemunho de entrega total a Deus e aos mais pobres, especialmente os povos indígenas da Amazônia.

Da juventude em Cachoeiro à vocação missionária

Desde muito jovem, Irmã Cleusa destacou-se pela inteligência e sensibilidade. Sua vocação religiosa floresceu cedo, levando-a a ingressar na Congregação das Missionárias Agostinianas Recoletas em 1952, aos 19 anos. Dois anos depois, integrou o grupo de religiosas que fundou a primeira casa da congregação na cidade de Lábrea, no Amazonas, uma das regiões mais desafiadoras e carentes do país.

Na época, Lábrea era um território isolado, de difícil acesso, marcado por profundas desigualdades sociais. Ali, Irmã Cleusa iniciou um caminho de presença solidária junto aos ribeirinhos, encarcerados, hansenianos, idosos e doentes, tornando-se conhecida pela dedicação, oração e simplicidade. “Era uma religiosa exemplar e observante. De grande espírito de oração e penitência. Extremamente dedicada aos pobres, encarcerados, hansenianos, velhos e doentes de hospitais. Sua maior atuação era junto aos índios e ribeirinhos”, recordou Irmã Paz Gallego, também das Agostinianas Recoletas.

A missão entre os povos indígenas

Após alguns anos de serviço em outras regiões, como Manaus (AM), Colatina (ES) e Vitória (ES), Cleusa retornou a Lábrea em 1979, reencontrando o centro de sua vocação missionária entre os Apurinã, povo indígena que habita o médio rio Purus.

Como coordenadora do sub-regional Norte 1 do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), que abrangia as prelazias de Lábrea e Coari, ela passou a atuar com firmeza na defesa dos direitos indígenas. Em uma época em que o regime militar promovia a “integração” forçada dos povos originários à sociedade nacional, Cleusa defendia o respeito à cultura, à terra e à autonomia dos Apurinã.

A região vivia sob forte pressão dos castanheiros e latifundiários, interessados nas riquezas naturais da floresta. Segundo Isaac da Silva Albuquerque, técnico da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), “era uma região de grande interesse dos coronéis, pelo potencial extrativista da castanha, e os indígenas eram vistos como obstáculo”. Nesse cenário, a atuação de Irmã Cleusa passou a ser observada com desconfiança. Muitos acreditavam que ela incentivava os indígenas a reivindicar suas terras, embora sua ação fosse essencialmente pastoral e humanitária.

O professor Moacir Apurinã lembra: “A irmã não intervia, ela dava o apoio de caridade: remédio que não tínhamos naquela época e ela trazia. A gente aprendeu muito com ela. E hoje é como se ela estivesse viva dentro de nós.”

A coragem diante das ameaças

Sabendo dos riscos que corria, Irmã Cleusa não recuou. Em confidência a lideranças indígenas, chegou a dizer: “Posso até morrer, mas não deixo de estar com vocês.” Suas palavras se tornaram profecia.

Em 1985, um conflito deflagrado pela morte de uma família Apurinã acirrou as tensões na região. Castanheiros e latifundiários haviam encomendado a morte do cacique Agostinho, líder indígena que lutava pela demarcação de terras. Não o encontrando na aldeia, o executor Raimundo Podivem, um ex-policial militar, assassinou sua esposa e seu filho.

A tragédia mobilizou os indígenas e colocou a região à beira de um confronto armado. Movida pela compaixão, Irmã Cleusa dirigiu-se à aldeia Japiim para consolar a comunidade e tentar evitar um derramamento de sangue. Após conversar com os indígenas e prometer que buscaria justiça junto às autoridades locais, iniciou a viagem de volta a Lábrea.

No caminho, encontrou o barco de Podivem. Testemunhas contam que ela pediu ao acompanhante, Raimundo Paulo, que se protegesse: “Te cuida, vai embora, porque você tem filhos para criar. Eu vou conversar com esse homem.” Momentos depois, foi assassinada com tiros de espingarda às margens do rio Paciá, tornando-se mártir da causa indígena.

O martírio que ecoa

A embarcação dela foi encontrada à deriva, o que levou às buscas que resultaram na localização de seu corpo.

O corpo de Irmã Cleusa foi encontrado no dia seguinte. O laudo atestou sinais de violência. Sua morte comoveu missionários, religiosos e comunidades em todo o país, tornando-se símbolo da luta pela justiça e pelos direitos dos povos da floresta.

Para o então coordenador do Cimi, Hoadson Leonardo, “Cleusa hoje não pertence apenas à congregação ou à Igreja. Ela pertence ao mundo e, especialmente, aos indígenas.”

Herança de santidade e esperança

O processo de beatificação de Irmã Cleusa foi aberto em 2 de junho de 1991, na Catedral Metropolitana de Vitória, e hoje tramita na Congregação para a Causa dos Santos, no Vaticano. Sua causa é reconhecida como a de uma mártir da fé e da justiça.

Para Dom Jesús Moraza, que acompanhou de perto sua missão, “Irmã Cleusa é um sinal da misericórdia de Deus viva. Seu martírio e sua doação completa marcaram profundamente os missionários e a Igreja na Amazônia.”

Quarenta anos depois: a presença que permanece

Em 28 de abril de 2025, completaram-se 40 anos do martírio de Irmã Cleusa. Sua memória continua acesa nas comunidades indígenas, nas celebrações litúrgicas e nas lutas pela terra e pela dignidade. Em Lábrea, onde repousam seus restos mortais, e em Vitória, onde está guardado parte de seu braço, seu nome é lembrado com reverência e gratidão.

Sua vida foi, como escreveu Egon Heck, “semente morta, enterrada, gérmen, força, luz na luta que continua”.

E, de fato, essa semente — plantada em Cachoeiro de Itapemirim, regada pelo sangue da Amazônia e fecundada pela fé — segue germinando em cada gesto de justiça, em cada missionário que ousa servir e em cada povo que insiste em viver com dignidade.

Como ela mesma dizia:

“Temos que construir fraternidade, é necessário, mas a justiça tem de estar na base de toda convivência humana.”

Quatro décadas depois, Irmã Cleusa Carolina Rody Coelho continua viva — no coração da Igreja, nas vozes dos povos indígenas e na esperança dos que acreditam que amar é também resistir.

Histórico do processo de canonização

O reconhecimento da santidade de Irmã Cleusa é um caminho que a Igreja trilha com reverência e esperança. A seguir, os principais marcos desse processo:

  • 1985 – 28 de agosto: Irmã Cleusa é assassinada no rio Paciá, Prelazia de Lábrea (AM).

  • 1990: A Superiora Geral, Madre Rosa López, solicita oficialmente a abertura do processo de canonização.

  • 1991 – 8 de fevereiro: A Santa Sé autoriza o início do processo.

  • 1991 – 2 de junho: O processo diocesano é aberto na Catedral Metropolitana de Vitória (ES).

  • 1993 – 25 de abril: Encerramento do processo diocesano, também em Vitória, após período de estudo e coleta de depoimentos.

  • 2016: O processo é retomado para adequação às novas orientações da Santa Sé, em Roma.

  • 2019: Durante o Sínodo dos Bispos sobre a Amazônia, realizado em Roma, no dia 25 de outubro, Irmã Cleusa é homenageada como mulher que entregou a vida pelos povos indígenas.

Para ser declarada santa, a Igreja exige um milagre comprovado atribuído à sua intercessão ou o reconhecimento formal de seu martírio — este último já amplamente testemunhado pelos que acompanharam sua trajetória.

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Autor:

Diocese Cachoeiro

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