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27.02.2017

Primeiro Domingo da Quaresma


(Gn 2,7-9; 3,1-7 / Sl 50 / Rm 5,12.17-19 / Mt 4,1-11)

 

Criados para a comunhão - O deserto, a tentação e a confiança em Deus - A obediência dos discípulos

 

A liturgia deste primeiro domingo da quaresma propõe em suas leituras um caminho a ser trilhado durante todo este período especial de conversão e busca de vida nova. Na primeira leitura, o relato da criação indica que o homem foi criado para a comunhão com Deus; essa é a sua vocação primordial, algo que é muitas vezes rompido pelo pecado. No evangelho, Jesus é tentado no deserto, lugar onde o que de mais profundo no coração do homem vem à tona, e também onde a tentação do rompimento com Deus deve ser vencida. Na carta de São Paulo, o apóstolo exalta a obediência de Cristo pela qual todos foram salvos, indicando para os discípulos do Senhor um modo de vida, um caminho de fé e comunhão com Deus e com os irmãos. 

 

A primeira leitura do livro do Gênesis traz o relato da criação da humanidade. O texto não tem o intuito de oferecer respostas históricas e nem mesmo científicas sobre a criação do universo e do próprio homem. Todavia, deseja apresentar algumas questões fundamentais que dizem respeito ao sentido da vida, qual a origem do homem, qual o seu propósito de estar aqui. O homem procura as suas próprias raízes e, nessa busca contínua, comete erros e acertos nesse seu caminho de encontro consigo e com Deus. Diferentemente de todos os mitos que estavam ao redor dos autores do livro na época em que fora escrito em terras babilônicas, o escritor sagrado relata a criação do homem da argila, exaltando o fato de que o mesmo ganha vida com o sopro que sai da boca de Deus. O homem foi criado frágil, pequeno, inconsistente, mas com a dignidade e a beleza de ser imagem e semelhança de Deus, chamado à comunhão com ele. Ao utilizar o verbo plasmar para referir-se à ação de Deus ao criar o homem, o autor do texto revela o cuidado divino comparável ao de um artesão que se debruça sobre sua tarefa de criar uma obra-prima de um material tão frágil quanto a argila. De fato, o homem foi criado pelo amor de Deus, que lhe ofereceu de si mesmo seu hálito de vida e seu espírito, para que o boneco de barro se tornasse um homem vivente, chamado à comunhão e à intimidade com o seu Criador.

 

O pecado do homem rompe com a comunhão com Deus, a que ele é chamado por vocação; por isso, o homem é lançado na terra seguindo a sua própria sorte devido as suas próprias escolhas. A proposta de comunhão e vida de Deus para o homem é desvirtuada pelo discurso da serpente, que perverte o que o amor divino propôs, a fim de que o homem se afastasse daquele que lhe conferiu a vida. A serpente era um animal que representava os ritos de fertilidade pagãos, com os quais Israel sempre teve que lidar, muitas vezes sucumbindo à tentação de se dirigir a esses lugares para oferecer sacrifícios. Pela boca desse animal vem apresentada ao homem uma exegese enganosa da Palavra de Deus, algo que seduz o coração do homem, que acaba por preferir a voz do ídolo à de seu Criador. Sendo assim, a intimidade e comunhão, originárias da relação da humanidade com Deus, que por amor criou o homem e a mulher à sua imagem e semelhança, dão lugar à vergonha e à fuga. O homem foge e se esconde de Deus por perceber que rompeu com ele a comunhão que lhe garantia a intimidade e a bênção.

 

O texto do evangelho que traz as tentações de Jesus no deserto é uma proposta que vem apresentada ao homem, para que seja capaz de fugir do pecado que rompe a comunhão. Em seu caminho no deserto, Jesus coloca nas mãos amorosas do Pai a sua total confiança e esperança, de modo que foi capaz de superar todas as tentações desse caminho árido e difícil. No texto, alguns símbolos estão presentes e devem ser vistos com cuidado e atenção: entre eles podemos destacar o deserto. Este lugar árido e inóspito, na Sagrada Escritura, é cheio de significados, desde lugar da prova e do castigo, até espaço de intimidade e comunhão. No caso do evangelho deste domingo, o deserto é apresentado como o lugar da prova. Jesus ao percorrer o deserto faz a mesma estrada do povo de Israel, como relata o texto de Deuteronômio 8,2. O deserto é o lugar da solidão e da prova, espaço onde a fragilidade e precariedade da vida podem ser sentidas fortemente, espaço no qual o Senhor desejou saber o que Israel tinha no coração (Dt 8,2). Nesse espaço cheio de significados, Jesus é conduzido, a fim de que as razões mais profundas de seu coração fossem colocadas às claras; ali ele rasga o coração e se apresenta profundamente confiante nas mãos do Pai e resoluto em fazer a sua vontade.

 

Nas tentações de Jesus, o que está em jogo é a sua relação com Deus, da mesma forma como aconteceu com Adão e com Israel em toda a sua história. Nelas se apresentam sempre as mesmas questões: o que garante ao homem a vida? De que ele tem verdadeiramente necessidade? O que o faz plenamente realizado? Na resposta de Adão percebe-se o afastamento de Deus e a escolha da voz do ídolo, representado pela serpente. Na longa estrada de Israel em seu caminho pelo deserto, a escolha não foi diversa, pois o povo prefere se dirigir aos ídolos e abandona a confiança na providência divina. Nos dois casos a busca da proteção e segurança, mesmo que infundadas, levaram a humanidade a se afastar daquele que lhe podia garantir a vida. Jesus, por sua vez, ao enfrentar as tentações no deserto, onde a fragilidade e a insegurança estão extremamente presentes, rejeita colocar a sua confiança no pão ou no poder, e confirma a sua fidelidade a Deus. Ele não sucumbe ao diabo, ao divisor, aquele que separa e distancia; ao contrário, não se afasta do projeto de Deus, que é de comunhão e grande confiança. Jesus sai vitorioso, onde Adão e todo o Israel se perderam. Ao depositar a sua total confiança de Deus ele vence a tentação e abre espaço para que os seus discípulos sigam o mesmo caminho.

 

Ao vencer as tentações, Jesus indica um caminho possível para os seus discípulos, no qual devem trilhar para viverem, no deserto de suas próprias vidas, em comunhão com Deus. A obediência de Cristo ao projeto de comunhão com Deus e a sua confiança irrestrita no seu amor de Pai foram as bases de sua vida.

 

A segunda leitura do texto da carta de São Paulo aos Romanos indica a forma como o pecado entrou no mundo e, ao mesmo tempo, como pela obediência de Cristo a humanidade foi salva. Diante das tentações do deserto e de todo o seu caminho, desde Nazaré até a sua entrega na cruz, Jesus foi provado em sua obediência ao Pai e ao seu projeto de amor e salvação. Sua decisão firme de viver e agir segundo os desígnios de Deus garantiu a ele ser fiel à sua missão, mesmo em meio às grande dificuldades e oposições que encontrou durante a sua vida pública. O apóstolo Paulo afirma que foi pela obediência de Cristo que a justiça de Deus, isto é, a sua misericórdia infinita que confirma o seu projeto de amor, foi oferecida aos homens. Ao escolher ser fiel, mesmo diante das tentações, Jesus indica um caminho para os seus discípulos trilharem, não uma estrada fácil e simples, mas necessária e possível. A obediência de Cristo nasceu e foi nutrida na oração, na busca constante da presença e na profunda comunhão com o Pai. Enquanto Adão se afastou de Deus e o desobedeceu, perdendo assim a comunhão e a graça, Cristo, de forma inversa, buscou o Pai e, na intimidade com Ele, se fortaleceu e saiu vitorioso das tentações. Desse modo, a estrada aberta e indicada pelo Senhor é uma via para todos os que desejam trilhar o caminho do discipulado missionário, ou seja, viver na comunhão com o Senhor, que garante a graça e a força de serem obedientes e fiéis ao projeto de amor de Deus.

 

Que a liturgia deste primeiro domingo da quaresma, tempo de grande graça e conversão, ilumine os corações de todos com o amor de Deus Criador e o seu chamado à vida em comunhão com Ele. Que no deserto da vida todos sejam fortalecidos pela graça de Deus, a fim de vencerem as tentações do abandono do Senhor e da fuga diante das necessidades dos irmãos. Seja Cristo, obediente ao Pai, aquele a guiar os passos de todos os seus discípulos neste caminho de conversão e busca de vida nova.         

 

Pe Andherson Franklin Lustoza de Souza

 

 

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